Por Roberto
Maxwell
Minha saída
do Brasil não foi algo extremamente pensado e planejado, como ocorre com boa
parte dos brasileiros que deixam o país.
Em 2005,
aos 30 anos, eu morava no Rio, cidade em que nasci, e era professor em uma das
mais conhecidas escolas públicas do país. Era um emprego considerado bom. Eu
dava aula majoritariamente para crianças de classe média alta, tinha uma renda
que, se não era exatamente compatível com as minhas responsabilidades, estava
bem acima da média do que se ganha no país, em especial nessa profissão.
Mas não
sobrava nada. Pagava as contas, vivia duro, insatisfeito e bastante infeliz.
Concordo que felicidade é algo muito subjetivo. Por isso, vamos logo escancarar
os fatos: eu estava deprimido, vivendo e trabalhando à base de medicamentos.
Tudo isso morando na Cidade Maravilhosa: praia, sol, mar e fluoxetina!
Olhava ao
redor e enxergava tudo com estranheza. Ruas imundas e gente jogando ainda mais
lixo no chão. Não era raro estar no transporte público e ver um sujeito
atirando latinhas pela janela. Passava noites sem dormir porque o vizinho fazia
aniversário e a festa vazava para o prédio todo. “Relaxa, merrmão, é só uma vez
por ano”, justificava o merrmão. Mas, vem cá, conta comigo: uma vez por ano
vezes 100 apartamentos é igual a… Enfim, todo mundo era bonito, todo mundo era
bacana, todo mundo era dourado – e ninguém por ali tinha qualquer senso de
comunidade ou respeito pelo outro. Todo mundo tinha todos os direitos — e
nenhum dever.
Era assim
que eu via: um estrangeiro em meu próprio país. Para geral, a parada tava
maneira daquele jeito. Eu era o incomodado e os incomodados que se… Bem, você
conhece o ditado.
Não sei
quando foi que caiu a ficha, mas uma hora tive certeza de que tinha que cair
fora. Sem grana, comecei a procurar bolsas de estudo no exterior, tarefa
difícil para quem tinha um inglês caído e já não era tão jovem.
Mas eu
queria uma chance de recomeçar. Foi quando me lembrei de uma amiga que tinha
ido estudar no Japão. Ela me deu as dicas de um programa chamado Teacher’s
Training, do governo japonês. Por coincidência, o período de inscrições estava
próximo. Me inscrevi e fui selecionado. Vim para o Japão no final de 2005 e
estou aqui até hoje. Falta pouco para completar uma década do outro lado do
mundo.
Fui para a
Universidade de Shizuoka, onde, após o programa, fui convidado a ingressar no
mestrado em Ciências Sociais. Terminei o curso em 2008, no início da crise
econômica mundial que atingiu o Japão em cheio. Decidi me mudar para Tóquio. De
uma hora para outra, me vi com um canudo de mestre nas mãos e desempregado;
pós-graduado e montando e desmontando estandes em feiras e eventos para
sobreviver. Era isso ou voltar para o Brasil – e a segunda opção estava
totalmente fora de cogitação.
Parece
cíclico. Toda vez que uma crise atinge o Brasil, um monte de gente “ameaça”
deixar o país. Por conta disso, muito se tem discutido sobre as dificuldades da
imigração, da adaptação, da assimilação pela cultura e pelo mercado em outro
país… O Draft vem abrindo espaço para esse debate — o que é muito legal. Por
isso, decidi compartilhar aqui a minha experiência.
De fato,
viver em outro país não é fácil. Agora, imagina se esse “outro país” for o
Japão. Aqui é o outro lado do mundo mesmo, não apenas em termos geográficos. O
arroz é sem sal. O café é sem açúcar. A carne é fatiada fininha que nem bacon.
Uma fruta custa os olhos da cara. As casas são mínimas. (E eu nem posso dizer
que sou um cara que viveu em casas espaçosas e luxuosas no Brasil.)
No inverno,
neva — e depois de dois dias, a neve já não parece tão bonitinha como nos
filmes. No verão, faz um calor pegajoso, como o Rio no auge de janeiro, só que
com muito mais prédios e sem praia. O calor em Tóquio lembra Bangu, se é que
você me entende.
Os
japoneses são educadíssimos, muito organizados, limpos e… fechados. É cada um
na sua. Privacidade e espaço individual valem ouro por aqui. O japonês de
verdade não é o que se vê nos mangás, nos animês, nos memes da internet: ele é
calado, reservado, desconfiado e — com o risco de ser injusto com um montão de
gente legal que eu conheci nesses 10 anos de desterro — um bocado
preconceituoso.
Eu, por
exemplo, estou aqui esse tempo todo, me esfalfando para aprender a língua, e
basta eu botar essa minha cara de gaijin (o correspondente a gringo na língua
japonesa) numa loja de conveniência que o/a atendente vai ignorar tudo o que eu
falo em japonês e me responder num inglês quase ininteligível. No pré-conceito
dele, todo gaijin fala inglês e não entende nada de japonês, essa língua
“difícil” de aprender. A suposta impenetrabilidade do idioma — ah, se eles
tivessem ideia do quão difícil é aprender português… — é um orgulho nacional
deles.
Enfim: são
vários perrengues com a língua, com a alimentação, com os costumes, com os
nativos, com a legislação… É assim a vida de um estrangeiro no Japão. E é
também assim a vida dos estrangeiros em outro qualquer lugar.
Apesar
disso tudo, não planejo — nem agora nem num futuro próximo ou distante — voltar
ao Brasil. Por quê? A resposta é simples: todo lugar tem problemas e o segredo
de uma boa vida é a adaptação. E considero que me adaptar à vida no Japão, com
tudo isso que relatei (e muito mais que ficou de fora), tem sido muito mais
fácil de encarar, e de vencer, do que a realidade que eu enfrentava
cotidianamente no Brasil. Era impossível para mim viver num lugar onde o
contrato social foi rasgado. Em nosso país, se estabeleceu há muito tempo
(desde sempre?) a ideia do cada um por si. Isso torna, no limite, a vida social
impossível. E o dia-a-dia, em todos os níveis, um salve-se-quem-puder.
De que
adianta um lugar ter sol-e-mar-e-gente bonita se o cara do seu lado ocupa um
espaço (tanto físico quanto social) muito maior do que precisa, não dá a mínima
para você ou para os outros à volta, emporcalha tudo, fala os berros, quer
sempre levar vantagem em tudo, te passa a perna…
Ou, ainda,
se ele se acha no direito de destratar, ou mesmo agredir, muitas vezes
fisicamente, alguém que considera “diferente” — seja preto, pobre, mulher,
velho, macumbeiro, homossexual?
De que
adianta ter os amigos e a família por perto, e viver próximo das suas raízes,
falando a sua língua materna, se todo dia você sai de casa sem saber se vai
voltar – se as ruas da sua “cidade civilizada em um país democrático” respira
um clima de guerra civil, expresso em um número de mortes semelhante ao de
regiões deflagradas na África ou do Oriente Médio? Eu sentia isso
cotidianamente, dez anos atrás. A sensação é de que nada parece ter mudado
nesse aspecto. Não me refiro àquela coisa de “todos nós morreremos um dia”.
Trata-se do risco real de morrer hoje, de ter a sua vida interrompida por
alguém armado, à espreita, pronto para lhe atacar numa fração de segundos.
Estive em
São Paulo em 2012, numa viagem excepcional. Mas, para cada experiência vivida,
foi preciso matar um leão. Comprar um bilhete de qualquer coisa numa fila sem
ser ludibriado é quase um milagre. Tem sempre alguém querendo passar na sua
frente. Entrar num trem ou no metrô é outro desafio. Embarque e desembarque
acontecem concomitantemente, desafiando aquela lei da física que diz que dois
corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo.
A
experiência no transporte público é de chorar. Você está apinhado dentro de um
ônibus e, de repente, se vê cercado, de todos os lados, por um monte de carros
praticamente vazios. Não faz o menor sentido. Ou melhor: o sentido disso é que
a locomoção no Brasil não é um direito, mas mais um símbolo de poder de classe
– o transporte público é ruim para sublinhar o poder e os privilégios de quem
pode ter um carro. Navego diariamente em Tóquio, a área urbana mais populosa do
planeta, com as linhas de trem mais congestionadas do mundo, e não vivo nem uma
fração desse estresse para ir e vir.
Vai a pé?
Cuidado: os veículos não param para os pedestres, nem as bicicletas respeitam
quem está a pé. Entrou na loja? Atenção: testa bem porque tem produto que não
funciona. (Depois se vira para resolver com o fabricante…) Pagou em dinheiro?
Confere o troco porque a chance é grande de vir faltando. Passou o cartão? Fica
de olho porque a máquina pode ser “chupa-cabra”. E o encontro marcado às sete
só acontece às oito porque a maioria das pessoas não se preocupa
verdadeiramente em chegar na hora.
Não sei se
a maioria dos brasileiros percebe o modo como essa engrenagem funciona. Mas, o
que aprendi, na marra, é que a vida é complexa demais para tanta preocupação
numa mera saída de casa. E é, também, muito curta para passar os dias batendo
de frente com gente que não entende as mínimas regras de convívio social e que
é orientado desde pequeno, na família, na escola, a resolver as coisas batendo,
xingando, usando os cotovelos e mostrando o dedo médio aos outros pela janela —
seja do SUV novinho em folha ou do Chevette sem placa.
Escolhi
viver num lugar onde é possível concentrar as energias no trabalho, no lazer,
em cuidar de si, em se relacionar melhor com os outros. É muito bom não
precisar se defender no convívio social. Exercitar a correção sabendo que o
outro também vai ser correto com você. É muita força vital que se gasta para
sobreviver num país como o Brasil. Infelizmente. O Japão, com todas as suas
dificuldades, me mostrou por que me faltava força para ir atrás dos meus
objetivos e sonhos, por que o dinheiro não rendia, por que a depressão só
aumentava…
Não digo
isso com alegria. Digo isso com muita tristeza. Não por mim, que estou a 20 mil
quilômetros daí, mas por todo mundo que eu amo e ficou do outro lado do mundo.
Diante
desse quadro, não houve calor nem praia nem colo de mãe ou ombro de amigo capaz
de me consolar ou de me segurar. Tóquio é o avesso da cultura em que nasci –
mas aqui me sinto em casa. Ao contrário, me sinto um estrangeiro no lugar onde
falam a minha língua, onde produzem a música que eu gosto de ouvir, onde
cozinham os sabores que me fazem salivar…
Nunca
entendi — nem aceitei — a forma como nosso país funciona. Só me resta torcer
para que, através desse relato, possa estar se abrindo uma porta para que, um
dia, quem sabe, esse diálogo possa acontecer.
Roberto
Maxwell, 40, é repórter e documentarista. Atualmente, é apresentador da Rádio
Japão da NHK World e freelancer nas áreas de produção e criação de conteúdo
para mídias impressas, rádio, TV e internet.